Candomblé – Axexê vida e morte: parte 3

Postado por: Ebomi at 10:16 0 Comentários

Sendo o Candomblé uma religião de transe, várias divindades participam ativamente do Axexé (rito funerário), especialmente os orixás associados à morte e aos mortos, ocupando Oiá ou Iansã lugar de destaque. Iansã é considerada o orixá encarregado de levar os mortos para o orum, atribuindo-se a ela o patronato do axexê, conforme mito narrado por Mãe Stella Odé Kaiodé, ialorixá do Axé Opô Afonjá, que resume bem a idéia do axexê como cerimônia de homenagem ao morto.

axexe ritual funebre

Assim diz o mito:


Vivia em terras de Queto um caçador chamado Odulecê.

Era o líder de todos os caçadores.

Ele tomou por sua filha uma menina nascida em Irá, que por seus modos espertos e ligeiros foi conhecida por Oiá.

Oiá tornou-se logo a predileta do velho caçador, conquistando um lugar de destaque entre aquele povo.

Mas um dia a morte levou Odulecê, deixando Oiá muito triste.

A jovem pensou numa forma de homenagear o seu pai adotivo.

Reuniu todos os instrumentos de caça de Odulecê e enrolou-os num pano.

Também preparou todas as iguarias que ele tanto gostava de saborear.

Dançou e cantou por sete dias, espalhando por toda parte, com seu vento, o seu canto, fazendo com que se reunissem no local todos os caçadores da terra.

Na sétima noite, acompanhada dos caçadores, Oiá embrenhou-se mata adentro e depositou ao pé de uma árvore sagrada os pertences de Odulecê.

Nesse instante, o pássaro "agbé" partiu num vôo sagrado.

Olorum, que tudo via, emocionou-se com o gesto de Oiá-Iansã e deu-lhe o poder de ser a guia dos mortos em sua viagem para o Orum.

Transformou Odulecê em orixá e Oiá na mãe dos espaços sagrados.

A partir de então, todo aquele que morre tem seu espírito levado ao Orum por Oiá (Yansã).

Antes porém deve ser homenageado por seus entes queridos, numa festa com comidas, canto e dança.

Nascia, assim, o ritual do axexê. (Santos, 1993: 91).

Também participam do axexê os orixás Nanã, Euá, Omulu, Oxumarê, Ogum e eventualmente Obá, não se incluindo, contudo, nesta lista Xangô, que dizem ter pavor de Egum, conforme narram outros mitos.

A seqüência do Axexê começa imediatamente após a morte, quando o cadáver é manuseado pelos sacerdotes para se retirar da cabeça a marca simbólica da presença do orixá, implantada no alto do crânio raspado durante a feitura, através do oxo, cone preparado com obi mascado e outros ingredientes e fixado no coro cabeludo sobre incisões rituais.

O cabelo nesta região da cabeça é retirado e o crânio lavado com amassi (preparado de folhas) e água. Esta lavagem da cabeça inverte simbolicamente o primeiro rito iniciático, quando as contas e a cabeça do novo devoto são igualmente lavadas pela mãe-de-santo. O líquido da lavagem é o primeiro elemento que fará parte do grande despacho do morto.

Depois do enterro, tem início a organização do axexê propriamente dito. Ele varia de terreiro para terreiro e de nação para nação. É mais elaborado quando se trata de altos dignitários e depende das posses materiais da família do morto. Genericamente conserva os procedimentos básicos de inversão da iniciação, havendo sempre:

1) música, canto e dança,

2) transe, com a presença pelo menos de Iansã incorporada,

3) sacrifício e oferendas variadas ao egum e orixás ligados ritualmente ao morto, sendo sempre e preliminarmente propiciado Exu, que levará o carrego, evidentemente, e os antepassados cultuados pelo grupo,

4) destruição dos objetos rituais do falecido (assentamentos, colares, roupas, adereços etc.), podendo parte permanecer com algum membro do grupo como herança,

5) despacho dos objetos sagrados "desfeitos" juntamente com as oferendas e objetos usados no decorrer da cerimônia, como os instrumentos musicais próprios para a ocasião, esteiras etc.

Quando, no final, o despacho é levado para longe do terreiro, tudo juntado num grande balaio, nenhum objeto religioso de propriedade do morto resta no templo. Ele não faz mais parte daquela casa e só futuramente poderá ser incorporado ao patrimônio dos ancestrais ilustres, se for o caso, podendo então ser assentado e cultuado. Por ora, o egum está livre para partir. Igualmente, o orixá ou orixás pessoais do falecido já não dispõem de assentos (ibá-orixá) no terreiro, tendo portanto seus vínculo desfeitos. O ori, que pereceu junto com seu dono, também não mais existe fixado num ibá-ori (assentamento). Se algum objeto ou assento foi dado a alguém, ele tem novo dono, para quem é transferida a responsabilidade do zelo religioso. Nada mais é do morto. Nada mais há que o prenda ao terreiro.

Durante o axexê, acredita-se que o morto pode expressar suas últimas vontades e para isso o sacerdote que preside o ritual faz uso constante do jogo de búzios. Assim, antes de cada um dos objetos religiosos que lhe pertenceram em vida ser desfeito, rasgado ou quebrado, o oficiante pergunta no jogo se tal peça deve ficar para alguém de seu círculo íntimo. Não é de bom-tom, contudo, deixar de despachar pelo menos grande parte dos objetos. Quando se trata de fundador de terreiro ou outra pessoa de reconhecidos méritos sacerdotais, é costume deixar os assentos de seus orixás principais para o terreiro, os quais passam a ser zelados por toda a comunidade. Não raro, assentos de orixás de mãe e pais de grande prestígio costumam ser disputados por filhos com grande estardalhaço, havendo mesmo relatos de roubos e até de disputas a faca e bala.

O axexê é realizado no terreiro em dois espaços: num recinto reservado, preferencialmente uma cabana especialmente construída com galhos e folhas, e no barracão. Na cabana, em que poucos entram, são colocados os objetos do morto, onde são desfeitos, aí se realizando os sacrifícios para os orixás e para o egum. No barracão são celebradas as danças, aí permanecendo os membros do terreiro, os parentes e amigos do finado.

O morto é representado no barracão por uma cabaça vazia, que vai recebendo moedas depositadas pelos presentes, no momento em que cada um dança para o egum. Todos devem dançar para o egum, como homenagem pessoal. Apesar dos cânticos e danças, o clima da celebração é propositalmente constrito e triste. Os atabaques são substituídos por um pote de cerâmica, do qual se produz um som abafado com uso de leques de palha batidos na boca, e por duas grandes cabaças emborcadas em alquidares com água e tocadas com as varetas aguidavis. Os presentes usam tiras da folha do dendezeiro, mariô, atadas no pulso, como proteção contra eventual aproximação dos eguns. Todo esse material, ao final, comporá o carrego do morto. No barracão também é servido o repasto preparado com as carnes do sacrifício, reservando-se aos ancestrais, orixás e egum as partes que contêm axé.

No quarto reservado, o morto é representado por recipientes de barro ou cerâmica virgens, os quais futuramente podem ser usados para assentar o espírito do falecido juntamente com os demais antepassados ilustres daquela comunidade religiosa, ou despachados.

Por influência do catolicismo, que costuma repetir a missa fúnebre em intervalos regulares, em muitos terreiros o rito do axexê é repetido depois de um mês, um ano e a cada sete anos, especialmente quando se trata do falecimento do babalorixá ou ialorixá. Mas a maioria dos iniciados, entretanto, acaba não recebendo sequer um dia de axexê.

Isto ocorre por falta de interesse da família carnal do morto, muito freqüentemente não participante do candomblé, por dificuldades financeiras, já que é alto o custo da celebração, ou por incapacidade do pessoal do terreiro para oficiar a cerimônia. Na melhor das hipóteses, os otás, pedras sagradas dos assentamentos, são despachadas com um pouco de canjica, reaproveitando-se todos os demais objetos sagrados.

Hoje, com a grande e rápida expansão do candomblé, o axexê parece estar em franca desvantagem com relação às demais cerimônia. Sobretudo em São Paulo, onde o candomblé não completou sequer cinqüenta anos, poucos terreiros dispõem de sacerdotes e sacerdotisas capazes de cantar e conduzir o rito fúnebre, obrigando a comunidade, em caso de morte, a se valer dos serviços religiosos de pessoa estranha ao terreiro, que costuma cobrar e cobrar muito caro pelo serviço.

Vários adeptos do candomblé, que se profissionalizam como sacerdotes remunerados, especializam-se em axexê. São então chamados para a cerimônia quando um terreiro necessita de seus préstimos. Isto, evidentemente, encarece muito a cerimônia, o que acaba por inviabilizá-la na maioria dos casos. Mesmo quando morre um sacerdote dirigente de terreiro, há grande dificuldade para a realização dos ritos funerários, sobretudo naquelas situações em que a morte do chefe leva ao fechamento da casa, provocada tanto por disputas sucessórias, como por apropriação da herança material do terreiro pela família civil do falecido. Vale lembrar que se pode contar nos dedos os terreiros que, por todo o Brasil, sobreviveram a seus fundadores.

Em geral, a família do finado não tem qualquer interesse em realizar o axexê e nem está disposta a gastar dinheiro com isso. Por outro lado, pouquíssimos pais e mães-de-santo, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, se dispõe a realizar qualquer tipo de cerimônia sem o pagamento por parte do interessado, mesmo quando o interessado é membro de seu próprio terreiro. Muitos pais e mães-de-santo mantêm terreiros especialmente como meio de vida, de modo que as regras do mercado suplantam em importância e sentido as motivações da vida comunitária.

Ao que parece, o empenho das comunidades de culto na realização dos ritos funerários, na maioria dos casos, é muito reduzido quando comparado com o interesse, esforço e empenho despendidos nos atos de iniciação e feitura, como se, com a morte, pouca coisa mais importasse. Cria-se assim uma situação em que a preocupação em completar o ciclo iniciático vai perdendo importância, alterando-se profundamente, em termos litúrgicos e filosóficos, a concepção da morte e, por conseguinte, a própria concepção da vida.

Os conceitos originais africanos de vida e morte vão se apagando e o candomblé vai cada vez mais adotando idéias mais próximas do catolicismo, do kardecismo e da umbanda, criando-se, provavelmente, uma nova religião, que hoje já se esparrama pela cidades brasileiras a partir de São Paulo e Rio de Janeiro, e que muitos chamam, até pejorativamente, de umbandomblé, em que os eguns, que são na concepção iorubá ancestrais particulares de uma específica comunidade, vão perdendo suas características africanas para se transformar em entidades genéricas, não ligadas a nenhuma comunidade de culto em particular, que baixam nos terreiros para "trabalhar", assumindo a justificativa da caridade, ideal e prática cristã-kardecistas que aos poucos vão suplantando os modelos africanos de ancestralidade e seus ideais de culto à origem e valorização das linhagens.

Esta nova maneira de pensar a morte e vida por grande parte dos adeptos do candomblé, sobretudo os de adesão mais recente, constitui forte razão para a crescente perda de interesse na realização do axexê para todos os iniciados.

Com isso, certamente, ganham terreno as concepções e ideais da umbanda e perdem as do candomblé. Isto é o contrário do movimento de africanização([1]) e já há muito se constituiu num processo oposto, o da umbandização do candomblé. Sem axexê, a feitura de orixá não faz sentido, pelo menos nos termos das tradições africanas que deram origem à religião dos orixás no Brasil. O ciclo simplesmente não se fecha e a repetição mítica, tão fundamental no conceito de vida segundo o pensamento africano, não pode se realizar.

 (Leia o texto parte 1 e 2)

O Axexê – Triste, porém necessário - parte 1


Axexê Ritual ao Morto – Parte 2


Texto original: Reginaldo Prandi


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